Certamente, o Taypá Sabores del Peru ocupa posição privilegiada na cena gastronômica de Brasília. Um dos retaurantes mais queridos, premiados e, de fato, criativos da cidade completa 12 anos. Como de hábito, a casa marca o aniversário com o lançamento de um menu comemorativo.
Este ano, o cardápio, intitulado Memórias, apresenta um curso de oito etapas, a incluir dois amouse bouches, duas entradas, três principais e uma sobremesa ao preço de R$ 220 ou R$ 350 com vinhos harmonizados. Gracioso e generoso no uso de ingredientes e referências culturais entre a cozinha peruana-nikkei, a brasileira e a francesa, como de costume, desta vez o chef Marco Espinoza se acomoda numa sequência mansa, pouco emocionante, sem ousadia e com, ao menos, uma execução desastrada.
Antes de detalhar a experiência do novo menu, é importante considerar que o Taypá precisa ser avaliado à altura do sarrafo que ele próprio estabeleceu em pouco mais de uma década de funcionamento - ainda em grande estilo - na QI 17 do Lago Sul.
É um restaurante já, de fato, consolidado e uma referência importantíssima. Desembarcou no terreno árido e avesso à invenção que era o mercado gastronômico de Brasília - salvo as incursões eurobrasileiras de, por exemplo, Mara Alcamim e Simon Lau Cederholm no final dos anos 1990 e início dos 2000. Com inveção, não falo de trends nem modismos efêmeros, pois desses estamos empapuçados.
O Taypá é fruto de um desses ciclos universais da dita boa mesa ou alta cozinha, pois integrou ainda o apogeu da cozinha fusion peruana, movimento iniciado no início do novo milênio, que teve como artífice o chef e empresário Gastón Acurio - e toda uma cena estimulada pela política pública de promoção turística do país pelo viés da gastronomia.
Essa expressão culinária caiu nas graças dos guias e prêmios europeus, se difundiu por todo o mundo e, no Brasil, arrisco dizer que tem dentre suas maiores referências justamente o Taypá, quando a restauratrice Ivone Carvalho (e demais sócios conhecidos pela operação do antigo Bier Fass, hoje Gran Bier) se juntou ao chef peruano, recém-chegado de uma temporada na Argentina, o Espinoza.
E não foi fazendo uma simples cebicheria regada a pisco sour (tem tudo isso lá também), mas insistindo em fundir elementos em comum dos dois países: macaxeira, frituras, frutos do mar e da terra e a grande novidade para desencaretar o paladar brasiliense: uso criativo e ostensivo da pimenta (dedo de moça, malagueta, rocoto, ají amarillo...).
Pois, se o Taypá por um lado conseguiu penetrar a dura carapaça do paladar médio da alta classe brasiliense afeita a carne magra de boi com risoto empapado, por outro nos acostumou a combinações inusitadas, provocativas e menos seguras comercialmente. Embora o novo menu Memórias apresente a cara do Taypá - com seus pratos bem desenhados de aliolis e molhos tingindo a louça qual óleo sobre tela, como ensina a cozinha contemporânea europeia -, o resultado no paladar reivindica sabores mais pujantes.
Abre-alas do menu, o sanduíche de manjubinha é o exercício de sofisticação da comida de rua, ao qual muitos restaurantes da jovem cozinha criativa têm se dedicado mundo afora. A comida de rua não é estranha ao Taypá. Muito pelo contrário: tacos, sandubas, burritos, petiscos e tapas para se comer com as mãos já cumpriam essa articulação que interrompe os modos franceses à mesa pelo gesto popular desde o princípio. Mas o sanduichinho em pão tipo francês se mostra trivial. Belíssimo o empanado da manjubinha, no entanto, se encareta na combinação com maionese, alface e algo próximo a um vinagrete.
Aliás, os pães do Taypá já foram melhores. No couvert o frescor do pão quentinho servido mascara uma massa quase farelenta.
Na sequência do petisco para estimular a salivação, chega à mesa uma vistosa e muito elegante casquinha cônica recheada de atum cru, ovas e uma saborosa e aveludada maionese de abacate. Mas este tampouco corresponde à pujança habitual dos menus inventivos de Espinoza. Eis uma receita nikkei, talvez principal faceta do Taypá há uns bons anos. Pois a combinação, embora agradável, não se favorece da riqueza salina das ovas, muito sutis na receita.
Do ceviche, o clássico peruano, esperava algo menos tradicional, como encontrei noutros menus comemorativos memoráveis (um leche de tigre com suco de goiaba e outro apimentadíssimo, meio surf & turf, se me recordo direito).
Estamos diante de um ceviche tradicional muitíssimo bem feito. Costumava implicar com a mão um pouco pesada no glutamato monossódico do leche de tigre da casa, mas desta vez estava impecável. Combinava camarão e dourado do mar, um dos melhores peixes subtropicais para se comer cru, eu acho. Ornam o prato milho chamuscado e o camote falso. Na ausência do tubérculo alaranjado peruano, Espinoza cozinha batata-doce em suco ou refrigerante de laranja e chega muito perto do sabor do original, embora o principal efeito seja meramente visual.
A última entrada é um tiradito de atum. Aqui aparece o Taypá em seu completo domínio da cozinha nikkei. Apimentado, doce, um bom shoyu, umami do foie gras, escamas de sal, acidez amargor... está tudo ali neste pequeno prato digno de integrar o menu oficial da casa. O único porém reside numa consideração "extra-prato" que faço: a banalização da combinação atum com foie gras, repetido à exaustão por qualquer sushizeria meia-boca com afetação de moderna. Sintomático de uma necessidade não planejada de abraçar a convenção gourmet.
Para os principais, o menu manda às favas a norma de se servir o peixe antes da carne vermelha. O brisket - um naco de peito muito bem aproveitado, gorduroso na medida - acompanha um purê de mandioca (quase um aligot), apagado diante da profusão de sabores que o emolduram: molho de coentro muito intenso, fresco, creme de alho assado para um toque de amargor e a infame farofa de panko.
Parêntesis: panko é um atentado à farofa, cometido por esse mercado goumert preguiçoso e afeito a domesticar e industrializar as formas de consumo típicas e tradicionais. Como pode alguém usar panko tendo à disposição a maior diversidade de farinhas e de processamentos da mandioca do mundo?
Neste prato, há uma conexão na boca que, por um lado, demonstra a engenhosidade de composição de sabores complexos do Taypá, mas, por outro, deixa a mandioca, nesta leitura dinâmica de uma vaca atolada, relegada a um papel quase de insignificância em duas medidas: dissolvida em favor da cremosidade leitosa do purê e na ausência de uma boa farinha, de mandioca, claro.
Na sequência, um filé de robalo confitado demonstra agora o domínio da escola francesa por parte da brigada de Espinoza, brincando com uma proposta que chega a despistar o paladar plano da comida europeia, mas que aos poucos assalta os sentidos. Este sim é o que espero de um menu comemorativo do Taypá. Uma interação com o limão, ao final um soco da anchova, a intrusão do creme de shiitake o molho de pimenta rocoto e o aioli de azeitona preta suplantam a combinação ibérica do pimentão vermelho com o sabor insosso (como virtude) da batata a apaziguar os conflitos de linguagens.
Para os habituais frequentadores do Taypá, acostumados às ousadias, o menu parece ligeiramente antiquado. Criativo, porém contido. O final do curso reflete cansaço nos pratos estreantes. O carré de cordeiro na brasa veio à mesa simplesmente desastrado, embora bem intencionado. Com um corte displiscente, o cordeiro somava tempero excessivamente salgado, passado do ponto e seguia em par com uma massa (suposto agnolotti) desconfigurado, desmanchando pelo excesso de recheio ou pela falta de estrutura (da receita da massa ou do cozimento pouco observado).
Salva-se o purê de milho, repleto de personalidade e, que, sinceramente, dispensa a redundância da massa, que está ali, penso, por algum tipo de obsessão do mercado brasiliense em elevar macarrão fatto a mano a algum tipo de instância superior da experiência gastronômica. Seria esta a explicação pra tanta lasanha individual por mais de três dígitos por aí?
De volta ao Taypá. Para finalizar, Espinoza volta a um porto-seguro. Logo na sua confeitaria tão cheia de surpresas, sabores complexos, brincadeiras e frescor. O bolo de chocolate com creme/sopa de chocolate branco com laranja encerra uma promissora sequência num ponto baixo. Bolo leve, perfeitamente executado, porém, ordinário. A calda, servida à parte é pesada, pouco refrescante, dominada pelo textura gordurosa do excesso do chocolate branco, sem permitir à acidez da laranja uma travessia poética até as papilas gustativas.
Curiosamente, alguns dos melhores menus do Tayá foram os mais arriscados ou pouco comedidos. Essa não seria a função de um menu comemorativo? Quem não conhece o restaurante, pode ter neste menu uma amostra ampla do conceito da casa, entre defeitos e as muitas virtudes. Mas a casa continua à altura da sua fama. Por isso, a menção do crítico ao Taypá é de 1 Garfo.
MENÇÃO DO CRÍTICO*
Vale a garfada
*A menção do crítico é outorgada aos estabelecimentos reconhecidos por sua qualidade, na avaliação total pelos critérios objetivos e subjetivos, independentemente de categorias (pode ser um carrinho de comida de rua local ou restaurantes nacional e internacionalmente reconhecidos). Mesmo passíveis de duras críticas, a casa pode valer a garfada ao final.
99,999999...% das matérias elogiosas a restaurantes são de "blogueiros" e "convidados" que, ao comerem de graça já ficam impedidos de emitir uma crítica real (mesmo que quisessem não conseguiriam por não terem o conhecimento técnico que o autor dessa tem, e não arriscariam ficar de fora de um novo convite). Parabéns ao autor que mesmo gostando do referido restaurante o criticou no que achou aquém. Desejar que haja mais críticos assim é utopia. Não haverá!
Aplaudo de pé esse tipo de crítica. Como somos carentes de conteúdos que esmiúce a gastronomia brasiliense de forma respeitosa e criteriosa. Nossa régua em Brasília, de forma geral, é muito baixa quando o assunto é comida. Vamos pensar mais para comer melhor. Quanto ao Taypá... mesmo com os tropeços aí desse menu comemorativo ainda figura como um dos meus restaurantes preferidos.