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Castália: padaria plural e bem fermentada



Panificação, vennoiserie e pizzaria como as da Castália pouquíssimos fazem. Ao menos com o alto nível de qualidade das farinhas, dos processos, das fermentações (que não se limitam aos pães), das receitas e das entregas. É o pacote completo, distribuído por três unidades: a padaria pequena original da 102 Norte, a versão expandida, quase uma deli, na 304 Sul, e a um tanto recente pizzaria da 709 Norte, dividindo espaço com o Ahá Cafés.


Nota: diria que, em Brasília, o Dylan Café & Bakery (315 Sul) ocuparia essa posição caso mantivesse alguma regularidade, não sustentasse aparência de "passo ponto" mesmo enquanto aberto, servisse um café decente e permitisse ao cliente encontrar disponíveis os maravilhosos sourdoughs, baguetes e focaccias produzidos pelo talento absurdo do mestre padeiro Fabrício Campos.


São três negócios, o que faz deste esforço de avaliação um périplo "carboidratado" por uma marca que não é franquia e traz características muito diferentes (muitíssimo, no caso da pizzaria) em suas casas. Acompanhem este passeio, portanto, de idas e vindas pela banda oeste das asas do Plano Piloto.


A Castália integra um movimento de "redescoberta" da panificação clássica, muitas vezes acompanhada do termo americanófilo "bakery". Refiro-me à clássica, pois requer um ingrediente há muito tempo esquecido pela panificação tradicional brasileira: tempo. Não há fermentação sem tempo. Há habilidades, farinhas a serem escolhidas (integral, centeio, tipo 1, 00, 65, etc.) e água.


Historicamente, a padaria brasileira produz em cativeiro. Refém da farinha industrializada, ela nos alimenta de pães ricos em substâncias artificialmente "melhoradoras", de nomes impronunciáveis ou somente assustadores mesmo (alvejante, fosfato de amônio dibásico e por aí vai). Por isso, esse crescente nicho da chamada padaria artesanal tem grande valor, para além de modismo ou da tendência marqueteira em aferir qualidade pelo rótulo da artesania do preparo.


De cabeça, em Brasília, cito algumas das que jogam nesta alta divisão: Dylan (com as ressalvas acima), Varanda, Cardabelle, Bella Focaccia, mas claro, a Castália. Ou melhor, as Castálias. O detalhe desta padaria em especial está também no destino conferido aos seus pães e na produção para além dele. Começo, assim, pela pizza.


Castália Pizza & Cerveja não tem nada das padarias. É pizza. E cerveja. Como é bom ter por aqui uma pizza como esta, não das napoletanas (e mesmo as falsas napoletanas) da borda estufada pelos alvéolos, mas como consequência do processo de fermentação do estilo biga, uma espécie de pré-fermento, necessariamente feito com farinha de muita força com um mínimo de 50% de hidratação. A biga é responsável por casquinhas mais suaves e crocantes na borda e bolhas de ar ainda mais intensas - afora características diversas, como uma melhor digestibilidade.


Farinha e água.


O resultado das pizzas, levadas ao forno iglu (sistema minilenha, de ignição automática, se não me engano), é visualmente similar ao da napoletana, mas resulta em estufamento mais belo, ainda que rústico, e permite-se sair um pouco mais chamuscada do calor - sim, vem queimadinha mesmo e está correto.


Uma das minhas combinações prediletas na pizza leva o molho de tomate quase adocicado da casa com o queijo de cabra (Cabríssima) e espinafre. Chama-se Especial Pra C***. A outra ofensa é a Que Picca, com copalombo, mussarela de búfala, mostarda e o mel picante a sugerir o título. O espaço funciona de modo dinâmico e não vai bem para grupões. Faça o pedido no balcão, pizza numa mão, cerveja na outra. E seja feliz.


De volta às padarias.


São duas Castálias absolutamente distintas, muito embora você encontre a mesma oferta de pães (e algumas pastinhas e queijos). A da Asa Norte, para mim, representa algo mais íntimo, com espaço de solitude, do encontro fortuito, da passagem, do andar errante. Ao conhecer a loja da 304 Sul, na apelidada Rua da Moda, no ponto onde funcionou uma Torteria di Lorenza tempos atrás, o principal aspecto a assaltar-me é a fachada de capitulares enormes a preencher o topo da comercial, ocupando com mesas e cadeiras a lateral e os fundos do perímetro da loja, com enormes bem-te-vis grafitados. Esta unidade representa a reunião de pessoas, o encontro programado, a parada para o café. Bons cafés (a maioria torrados e embalados pela Ahá Cafés e pela Civitá).


Em ambas, o que vemos em comum está no cuidado da seleção das farinhas, desde os tipos à procedência. Isso já coloca a casa em outro patamar de qualidade, que se reflete em sabor, textura e aparência. A vitrine da 102 é passível de provocar uma comoção pública, pelo cheiro que exala e a magnificência das formas, das cores e dos desenhos dos pães.


Há, sim, os clássicos reproduzidos à perfeição: baquete, brioche, campanha, sourdough, pão de centeio e tal. E também se sai bem nos seus pães de cacau, a minibaguete com um masala de curry e o nada modesto e quase carnavalesco "pão de inverno", que saiu sem vergonha agora, neste verão, com sua mistura de trigo e centeio mais tâmara, canela e pimenta-do-reino.


Vou pular minhas impressões sobre os "Tonis", panetones da casa, pois fora de época (e já falei muito sobre na CBN em programas natalícios dos últimos dois anos).


A vida parece perfeita para o cliente da Castália. Mas não é. E isso não precisa ser um enorme problema, mas você leitor precisa ter uma leitura o quanto mais sincera das experiências. A casa (sobretudo a da 304 Sul) é um dos meus mais regulares destinos para um coffice. Conheço bem. Os pães formidáveis desde sempre.


Mas, sabe aquelas coisas que dão errado de vez em quando? Um café que deu uma estremecida na viagem até a mesa e seguiu mesmo assim, com as lágrimas de ébano escorrendo por fora da xícara; um sanduíche quente que veio frio, uma conta errada, um banheiro sujo… Pois rolou tudo isso comigo em visitas antes e pós-pandemia.


Nos últimos meses, o serviço tem se mantido muito mais ajustado, mas um tanto quando desastrado ainda. A xícara de café ainda chora ocasionalmente - embora a qualidade do serviço de barismo mantenha-se em bom padrão. Considero esses poréns menos relevantes do que o que noto nas comidinhas ali servidas.


Gosto da ideia de todo o menu de sanduíches, mas sempre me vêm com algum defeito gritante. Gostaria de pedir sempre o de pulled pork (porco desfiado), mas quando o comi pela primeira vez, restava insosso e pouco úmido. Há poucas semanas, o pastrami produzido na casa para o clássico sanduba de delicatessen estava quase incomível: gordura não renderizada, fibras elásticas, ficou todo no prato. Nesta hora, garçons mais ligados perguntariam o que houve de errado.


Isso não acontece com as torradas, agora chamadas de toasts. A diferença do modelo em inglês é que se assemelham a bruschettas, com coberturas mais frondosas e moderninhas. A popstar é a de abacate. Não há cafeteria hipster sem brunch com avocado toast. Regra do jogo comercial. Muito boa a daqui. Abacate um tanto amanteigado a equilibrar picles de cebola e ovo frito com gema mole. Toque de limão. Minha favorita é a de salmão defumado, curado com beterraba para uma coloração mais vibrante, e maionese de coentro.


Agora, a vitrine da pastelaria é formidável. Pode até dispensar uma visita ao menu: da vennoiserie (folhados) à confeitaria. Assados à perfeição, com recheios simples, porém, indefectíveis, caso do que vai queijo Minas e do de tomate. Na seção açucarada, não me furto a pedir a pantufa de maçã, uma massa folhada com o recheio citado, docemente e acidamente vibrando em uníssino nas papilas gustativas.


Orgulhos da casa, o cinnamon roll é enorme e muito saboroso. Feito daquele jeitão americano, mas com ingrediente bom. Mas a rabanada de brioche, embora de textura correta, deixa passar um retrogosto do ovo aplacado somente pelo exagero da cobertura de caramelo salgado. Dos doces, o lugar seguro segue a tortinha de chocolate com flor de sal. Nasceu clássica.


Deixo a menção do crítico abaixo em homenagem a Edu/Edi, o Eduardo Neiva Tavares, boulanger, pizzaiolo e sócio da padaria, falecido de forma inesperada e muito precoce em novembro passado.


MENÇÃO DO CRÍTICO*


Vale a garfada




*A menção do crítico é outorgada aos estabelecimentos reconhecidos por sua qualidade, na avaliação total pelos critérios objetivos e subjetivos, independentemente de categorias (pode ser um carrinho de comida de rua local ou restaurantes nacional e internacionalmente reconhecidos). Mesmo passíveis de duras críticas, a casa pode valer a garfada ao final. E mesmo tendo reconhecidas suas virtudes, o restaurante pode não valer a garfada.

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