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Vinícola Brasília: a profecia enogastronômica concebida no Planalto Central



Por todos os solos pelos quais algum vinhateiro se atreveu a cultivar um pé de vitis vinifera para finalidade enológica na Era Moderna, duas certezas estavam postas: o desejo de se produzir ótimos vinhos e a total ausência de certeza nos resultados da empreitada. Foram com doses equilibradas de desconfiança e esperança que até mesmo as tradicionais viticulturas do Velho Mundo começaram a descobrir seus terroirs.


Brasília seguiu a cartilha, tal qual fizeram os gaúchos e imigrantes italianos no início do século 20 -- e, antes deles, os precursores chilenos e argentinos na América do Sul. Pouco mais de 10 anos depois dos primeiros vinhos engarrafados resultantes do cultivo de videiras no Cerrado (em terras goianas), a capital federal consolida seu roteiro enológico e enoturístico com a inauguração da Vinícola Brasília, no domingo (21), por ocasião do aniversário da capital federal, sob um estonteante projeto arquitetônico à beira do Km7 da BR-251, na região do PAD/DF.


A Vinícola Brasília nasce como uma espécie de cooperativa - modelo usado por muitas tradicionais vinícolas italianas e francesas. Ou seja, vários pequenos produtores independentes se juntam para produzir vinhos com mais volume e, portanto, maior capacidade de distribuição, sob um selo único.


Os primeiros vinhos da Vinícola Brasília já estão disponíveis para degustação e compra. Ora, a própria experiência enoturística já pode ser apreciada desde o fim de semana. Estive no sábado por lá, no evento formal, para convivas e autoridades. No domingo, o público poderia garantir um ingresso para degustação.


Absolutamente inspirado no modernismo arquitetônico da própria cidade, a Vinícola Brasília foi desenhada desde a belíssima cave no subsolo, com teto de vidro transparente, ao paisagismo exuberante em torno da fachada de cair o queixo. Na cave, fica uma enorme mesa de jantar e as barricas de carvalho para o envelhecimento dos vinhos, todos com nomes sugestivos ao imaginário da construção de Brasília: Cobogó, Pilotis, Alvorada, Croqui e Monumental.


Detrás deste prédio, um galpão armazena os enormes tanques de aço inoxidável, onde o mosto é fermentado e amadurecido. Tudo etiquetado com as cepas e a vinícola que a fornece. São 10 que integram o projeto: Alto Cerrado, Casa Vitor, Ercoara Cordeiro & Vinho, Horus, Marchese Vinhos, Miro Vinhos e Vinhedos, Monte Alvor, Oma Sena, Villa Triacca e Vista da Mata.


Todas vinícolas produtoras de vinhos finos (vitis vinifera), utilizando a metodologia da dupla poda, responsável por inverter o ciclo das uvas e permitir uma melhor maturação das uvas, considerando o clima e o solo do Planalto Central. São vinhos de colheita de inverno, portanto.


Quem já os conhece, percebe que há características bem próprias dos vinhos de colheita de inverno. Provar os primeiros rótulos da Vinícola Brasília reforça esta sensação, que talvez chamaremos num futuro breve de tipicidade do terroir. Sim, é um novo terroir. Como o do Vale dos Vinhedos, da Campanha Gaúcha ou mesmo do Vale do São Francisco, hoje já reconhecidos com algum tipo de identificação geográfica ou denominação de origem.


Certamente, o Cerrado, ou o terroir hoje apelidado de Planalto Central, terá cancha para estabelecer os critérios de produção e as características típicas a ponto de reivindicar para si tal critério de regionalidade.


Vamos celebrar a conquista, mas ainda acompanhar com calma a evolução dos vinhos que dali saem. Vinho é tempo. Tempo do parreiral, tempo de experiência, tempo de maturação, tempo de imaginação, tempo também de degustação.


Degustei os vinhos em um ambiente nada propício para uma avaliação precisa. Foi mais para conhecer mesmo. Afinal, era um evento para centenas de pessoas. Fatalmente, provei vinhos fora de temperatura e desarrolhados há sei lá quanto.


Trabalhado como o principal vinho da marca -- provavelmente, será o gran reserva da vinícola - o Syrah Monumental 1960 já chegou ao público premiado. Trata-se de um monovarietal a partir do blend de uvas de todos os vinhedos integrantes da vinícola. Apenas sugestivas 1.960 garrafas produzidas (todas numeradas). O vinho foi uma das 16 amostras mais representativas da safra 2023 pela Avaliação Nacional de Vinhos, da Associação Brasileira de Enologia (ABE).


Um vinho muitíssimo jovem para ser degustado, a meu ver. Precisa de tempo mais uma vez. Sua prova entregou um trabalho redondo, claramente bem feito. Incrivelmente macio e pouco tânico apesar de sua graduação alcoólica elevada (15%), mas absolutamente imaturo.


Com quase 30º na testa, em degustação ao ar livre, o momento não era o ideal para experimentar os tintos. O rótulos Alvorada e Syrah - Edição Especial têm a seu favor perfis que vão agradar muito o paladar brasileiro, afeito a uma boa tanicidade em estrutura corpulenta. Um deles é o monovarietal Malbec Alvorada (nem tão típico assim) e o outro um típico Syrah cerratense da safra de 2021, que já mostra seu caráter e personalidade. Fecha a lista dos tintos o Croqui, resultado de um corte da uva-xódó dos argentinos com a estrela dos solos brasilienses, a unânime Syrah.


Para este dia de inauguração, foi possível apreciar, de fato, os vinhos próprios para a ocasião. O branco Cobogó, por enquanto, me parece ser a estrela da vinícola, pois a jovialidade o favorece. Fresco, ácido, com aquele cítrico meio de maracujá esperado de um Sauvignon Blanc, sugere poucas arestas a serem aparadas. Na roda com colegas sommeliers e degustadores, a percepção não foi unânime. Ainda bem, mostra que há nuances e camadas a serem descobertas deste vinho -- para o bem e para o mal. Deve uma segunda prova.


De um blend curioso de Tempranillo e Syra, o rosé Pilotis se mostrou bem refrescante. Achei ainda um tanto "desengonçado" ao primeiro gole. Com um tempo (mais uma vez ele, este senhor do vinho) a temperatura um pouco mais elevada e a oxigenação breve contribuíram para crescer e se arredondar.


Mais uma vez, muito cedo para sairmos já falando tudo o que esses vinhos caçulas do Cerrado podem oferecer. O prognóstico é ótimo. E a "profecia" está para ser realizada -- literalmente até se tudo der certo com o projeto do novo rótulo que estão preparando a partir dos vinhedos "cru" de cada vinícola.


O imprevisível e o ambíguo ficam para trás enquanto aguerridos vinhateiros insistirem em produzir vinhedos nas regiões mais inóspitas. Há quem diga que Dom Bosco, ao profetizar a construção de Brasília no Planalto Central, teria imaginado implicitamente um destino enogastronômico para a, hoje, capital federal: "uma terra que mana leite e mel".


A referência é a do livro bíblico de Deuteronômio: "terra de trigo e cevada, videiras e figueiras, de romãzeiras, azeite de oliva e mel". A uva estava dentre os frutos da Terra Prometida de Canaã e, pelo jeito, de Brasília também.

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