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Cose buone tra amici: addio, Ninny


Era para ser uma crítica, virou uma crônica. Foi publicada no extinto blog coletivo que mantinha com os amigos da cultura no site de Veja Brasília, circa 2014.


Nunca consegui recuperar, mas tento abaixo recolher os cacos e extratos daquela experiência, uma espécie de declaração de amor enviesada pela comida fugaz de um gênio enclausurado, o siciliano Antonino di Giovanni, mais conhecido pela alcunha que dividia com o seu restaurante: Ninny, acompanhado do subtítulo Cose Buone Tra Amici.


Boas memórias coleciono com este "quasi-amico", cuja personalidade no íntimo de nosso convívio era uma mistura de carisma e grosseria; alegria e melancolia.


Primeiro contato que tive com Ninny fora há 20 anos, mais ou menos, quando Dri e eu fomos jantar no seu restaurante da 309 Norte, Brasília. 


Ninny era um gordo que adorava os gordos. Portanto, logo fui seu olhar repousou sobre mim, num dia em que operava na função de mâitre da casa (onde ele também fazia vezes de garçom, de sommelier, de chef, de dono... e mais um pouco). 


Mandou logo um pratinho com lascas retiradas da roda de grana padano que, nos tempos áureos, exibia no balcão sob reflexos das taças. Dri queria uma massa, mas Ninny nos empurrou um ossobuco. Ainda nem escrevia sobre comida à época, nem sabia que diachos era um ossobuco. Tanto que estranhei ele ter-nos servido o que, no meu repertório lexical da épica só conhecia como chambaril. 


Uma das melhores refeições que tivemos. 


Voltamos algumas vezes. Já crítico de gastronomia, revisitava ainda mais seu rol enorme de massas e molhos, sobretudo, e aquele tiramisu safado que servia de sobremesa -- como escrevi numa das críticas, à qual ele concordou meio contrariado e ofendido. 


Mas havia uma empatia mediada pela obesidade mórbida que conferia leveza à nossa relação.


O pináculo deste momento foi quando, já cansado de escrever sobre o Ninny - e o próprio Ninny de depender do Ninny - fui avaliar seu novo empreendimento à época (10 anos atrás): um lugar de desenho insinuante de atividades um tanto obscuras chamado Dolce Baccana, no início da Asa Sul (403, se não me engano). 


Ninny que me dissera: "Loban, tô abrindo pra almoço lá agora, porque de noite é pra outra coisa, hahaha". 


Fui. Sem avisar, como sempre. 


E levei comigo meu grande parça Bernado Scartezini, o Berna. Outro gordo. 


O lugar estava às moscas. Luzes apagadas no salão e, ao fundo, uma cópia tarantinesca do enquadramento clássico de John Wayne à porta do saloon em Rastros de Ódio (1956), do John Ford, mostrava sob a luz solar do ambiente externo uma família, talvez do próprio Ninny. Único sinal de vida.


Cena: Dolce Baccana, interior, dia.  


Sentamos à mesa. Ninny surge do subsolo todo suado. Reclama, claro, que viemos sem avisar, que não se fazia uma coisa dessas, mas logo carinhosamente agradeceu ao reparar o volume das barrigas aglomeradas agora em seu salão.


Pedi uma bruschetta para começar (e era melhor não tê-lo feito). Ao virar a página para o primo piatto, Ninny recolheu os cardápios. "Deixa comigo. Eu vou escolher". 


(Claro, devia ser a única coisa que tinha, não nos parecia que Ninny planejara o serviço do dia).


Veio um pratarraz como nunca vi em restaurante italiano nenhum por aqui. Parecia mais uma travessa de almoço familiar de domingo. Brilhava de azeite extravirgem sobre o espaguete al dente tingido de um espesso e suculento molho tomatoso, entremeado por inúmeros polpettine.


Às mordidas, as pequenas almôndegas explodiam revelando pequenas bolhas de mussarela de búfala borbulhantes cravejadas com manjericão fresco. 


O famoso simples extraordinário que deu fama à cozinha de nonna. 


Nunca vira, desde aquele ossobuco, Ninny cozinhar com tanta intensidade. 


Picante, adocicado, gorduroso, com um generoso punhado de parmeggiano reggiano (come se piovesse) sobre a massa.


Berna não parava de comer e de me perguntar como sempre: "isso é genial ou é só porque sou gordo"? 


Não, Berna, era simplesmente genial.


Testemunhei a decadência da cozinha de Ninny nos anos seguintes. Dolce Baccana não prosperou e a qualidade de seu restaurante homônimo caía ao passo em que Ninny narrava sua frustração com o mercado atual. 


Sempre falava comigo como se num confessionário. 


Às vezes coisas profundamente pessoais, que não hei de revelar aqui. Outras meio enigmáticas, como nossa última conversa. 


Acabara de voltar da Itália, no meio da pandemia. Assim que o Ninny reabriu passei por lá doido para, finalmente, gastar meu italiano com ele. Pra quê? Ele logo me acusou de ter aprendido errado (com os piemonteses). A velha rivalidade com o seu caloroso sul impediu a fluidez do papo na língua nativa dele.


Sobrou o lamento: "Todo dia é isso, encosto aqui neste parapeito, e vejo puro pano, puro pano.... Vou dormir e fico sonhando com puro pano"...


Puro Pano é a loja enorme do outro lado da rua, na 8. Ele falava que era o povo que vendia tecido é que tava certo, porque ninguém mais queria saber de comida.


Os novos tempos do mercado gastronômico foram cruéis, particularmente com os italianões clássicos, métier no qual Ninny era referência. 


Para o bem e para o mal, a geração que chamo de "Filhotes de Fasano e órfãos de Gero" dominou o modelo da comida italiana brasiliense. 


Ninny, restaurante e restaurateur, não resistiu ao tempo. Mas deixa um legado dos mais memoráveis para a história da gastronomia italiana em Brasília.


Addio, amico. Muitas coisas boas entre nós.

 
 
 

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