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Foto do escritorGuilherme Lobão de Queiroz

Le Birosque: toda a elegância do porco



Le Birosque reúne o melhor dos dois mundos da restauração: a singular identidade boêmia e a sofisticação gastronômica, sem pedantismo, do restaurante com serviço de salão e cozinha de pinças.


Sua mais nobre matéria-prima vem justamente da cozinha popular caipira, outrora tratada pelo sistema gastronômico com desdém: a carne suína.


Curiosamente, o Le Birosque propõs uma abordagem centrada no suculento e versátil animal em momento muito propício de "redescoberta" e "ascensão" do bicho ao imaginário da dita alta cozinha.


Era 2015 quando o chef Luiz Trigo abriu esta birosca - ironicamente gourmetizada com o sotaque francês - do mais alto nível de qualidade num dos pequenos boxes da Quituart, no Lago Norte (Brasília).


Coincidentemente, era o ano em que Jefferson Rueda inaugurava A Casa do Porco, também com ênfase na linguagem caipira e na carne suína, aplicada a dimensões cosmopolitanas.


São duas casas absolutamente diferentes em estilo e em proporção, obviamente. A Casa do Porco, até por estar na megalópole de São Paulo, ganhou atenção do país e do mundo. Le Birosque poderia tranquilamente, pela comida principalmente, dividir essa atenção global. Casas gemelares separadas antes do nascimento, diria.


Mas não quero falar sobre A Casa do Porco. Muito foi dito. Trago a referência pela coincidência, que revela uma quebra de paradigmas quanto à própria carne suína tão rejeitada nos grandes rincões da gourmandise nacional.


Le Birosque era um pequeníssimo boteco de feira - a Quituart é uma cooperativa de artesãos que se estabeleceu principalmente pela oferta gastronômica e se tornou reduto de boêmios, famílias e de gourmands. Lá, Luiz Trigo e equipe mostravam a grandeza da simplicidade de sua comida desde o dia 1 da operação.

O antigo Le Birosque na Quituart

Há um predicado que o difere de tudo que já vimos em Brasília -- e, em muitos aspectos, no Brasil:


Por um lado, um boteco de alma boêmia, que captura os símbolos das mercearias do interior, da estufa de frituras, da cachaça mineira e da cerveja estupidamente gelada. De outro, mas igualmente central na identidade da casa, a comida de avançadíssimo apuro técnico, sem deixar sobrepujar características essenciais da simplicidade quase doméstica de botequim.


Ao fechar o diminuto box na Quituart e refundar o Le Birosque com estrutura de restaurante na 408 Sul, no antigo ponto do Parrilla Burger, Trigo chama para si uma maior responsabilidade, que ele e a equipe tiram de letra, mas também alguns problemas ou desafios a serem superados.


Comecemos pelos desafios. O primeiro é o do conceito da própria casa. Em pouco tempo e num espaço pequenininho, o Le Birosque fez um enorme barulho e se tornou uma grande referência de comida boa, criativa, bem feita, mas também de um reduto botequeiro.


Em alguns meses a casa completa um ano de atividade no novo ponto. Ou seja, ainda é muito nova, mas já em tempo de funcionar redondinha. É uma operação muito mais complexa do que na Quituart. Equipe maior, cardápio maior, porém enxuto para o porte da casa. Mas há um evidente conflito de posicionamento, que não é uma questão de marketing, mas de serviço sobretudo.


Para mim, frequentador assíduo e ex-vizinho do Le Birosque, onde batia ponto ao menos mensalmente, não incomoda (e é até desejável). Mas não podemos pensar numa crítica do ponto de vista estreito do habitué. Faço esse exercício.


Aliás, na última visita realizada (sempre sem me anunciar, de forma anônima, dentro do possível, e pagando a conta ao final), dei "sorte" (como crítico) de não ser atendido pelos garçons que já conheço de sempre. Portanto, não fui reconhecido imediatamente.


Assim, testemunhei um atendimento informal (como não precisa deixar de ser enquanto restaurante), porém equivocado. Exemplo: o menu de almoço do dia não foi "cantando" (nem sabia da existência do executivo, pois não foi "vendido" pelo garçom, como de hábito).


Outro problema é a carta de vinhos - um problema de muitos restaurantes que precisam, pelo bem da saúde financeira da operação, recorrer à Del Maipo. A empresa parece adotar uma seleção aleatória. Rótulos que não servem nem para serem chamados de vinhos de entrada. É um problema? Antes, quando mais boteco, não. Agora, enquanto mais restaurante, sim.


Sinceramente, considero uma necessidade tola, mas o mercado pede para que um restaurante tenha vinhos, mesmo que não seja o perfil da casa, como é o caso. Como resultado, mancha a reputação e se torna um convite para enófilos preferirem encarar a taxa de rolha.


Quando no Le Birosque, o desejável é vir uma cerveja gelada ou uma belíssima Encantos da Marquesa.


Dito isso, é preciso elevar o Le Birosque à sua real estatura, para além desses problemas superáveis.



Conheço do focinho ao rabo o cardápio da casa - até o almoço de funcionário, o qual já tive duas oportunidades de provar.


(eis aqui um belo termômetro para medir competência de um restaurante, se fosse possível. Funcionários devem comer tão bem quanto o cliente, ainda que uma comida considerada menos sofisticada).


O feijão gordo com aparas suínas (da orelha ao pé) é uma iguaria servida exclusivamente para os trabalhadores do restaurante, mas que me faria escolher e pagar por um prato do menu e sair de lá satisfeito.


Acompanho Trigo desde quando chefiou o finado Ares do Brasil - lá se vai mais de década. Mas antes disso ele se escolou no Grupo Fasano.


É evidente como há o Luiz Trigo chef profissional, especializado na gastronomia italiana, que entrega precisão e um refinamento rústico (característica pessoal) e o Luiz Trigo por trás do conceito criativo da comida do restaurante próprio, trabalhando com o repertório clássico somado à sabedoria da memória na infância do interior paulista transformada em ofício.


Este último é o responsável pela porchetta mais celebrada do Distrito Federal - e arrisco dizer um dos exemplares mais interessantes do repertório nacional da cozinha contemporânea. Barriga de porco recheada com ervas e massa de linguiça, pururucada, fatiada e servida sobre uma tábua de madeira, adornada pela indefectível polenta mole, com molho cítrico e herbáceo.


Esse foi o prato onde tudo começou. Depois dele veio o mais refinado: bochecha de porco ao molho de vinho, minifolhas e a mesma polenta mole com manteiga e grana padano que não nos cansamos de repetir - Marcelo, traga mais uma porçãozinha, pelamor de Deus!


Também veio o mais botequeiro: torresmo de rolo, com limão (ora cravo, ora capeta, ora galego, o que estiver à mão) e pimenta da casa no ramequin, melhor companhia para aquela talagada na Marquesa. Foram mantidos os empratados caipiras deliciosos e bem-sucedidos da Quituart: arroz de suã e arroz de puta rica.


Mas a primeira coisa que você deve fazer no Le Birosque é mergulhar nos petiscos da casa: os bolovos estão incríveis, sobretudo a estreante da nova casa com massa de bacalhau a envolver o ovo num abraço suculento, a esconder o brilho dourado-gelatinoso da gema escorrendo após o corte no empanado exterior crocante e bem temperado.


Afora este, brilham na estufa o croquete de aipim com carne-seca e a coxinha de porco. Você pode também convidar à mesa a barriga crocante oriental, uma espécie de burnt ends de porchetta marinada e glaceada em molho agridoce à base de shoyu. Aliás, o diálogo com a culinária japonesa, permite ao Le Birosque nos agraciar com um perfeito katsu sando - sanduíche de tonkatsu (bife de porco à milanesa, coleslaw e picles).


Dentre as entradas, Trigo experimenta com terrines e rillettes, suprassumos do couvert francês do reino dos patês. Receitas maduras, dentre as melhores a que temos acesso por aqui, embora não tão complexas como as grandes obras da charcuterie francesa. Falta maior atenção à qualidade do pão da casa, que depõe contra o belo prato de aperitivos.


Carece também de melhor apuro no rosbife com minifolhas. Belíssimo prato dos tempos de outrora, mas que nas primeiras visitas no novo endereço se apresentou um tanto fora do ponto, com cortes mais grosseiros. Não sei o que houve, parece intencional, talvez para adular o paladar médio.


Dos pratos principais, além da porchetta e da bochecha, há agora um prime rib suíno e uma cotoletta à parmigiana, que oferecem uma possibilidade de se deliciar de toda a mineralidade torresmística do porco em cortes mais carnudos, menos suculentos e mais magros, porém servidos em ponto indefectível. Aos sábados, ostenta na TV de cachorro um joelho de porco pururucado, para dois.


Trigo é um chef que sabe fazer comida de almoço, a grande refeição da classe trabalhadora brasileira e, portanto, a mais importante a se referendar. Na última visita, mudei meu pedido regular para conhecer o belíssimo milanesa do dia, quase uma orecchia di elefante italiana, com salada simples, suave, fresca e equilibradamente temperada, amparada por batatas rústicas.


Não há prato ruim no Le Birosque. Há apenas questões a se discutir.


Na nova seção do cardápio, dedicada à expertise do chef na gastronomia italiana, aparece um rigatoni all'amatriciana saboroso, porém excessivo, com um desnecessário acréscimo de fonduta de queijo, que simplesmente massacra toda a personalidade do clássico, em favor, mais uma vez, de adular um paladar instagrâmico, a exigir do prato mais do que ele é, de potencializar sabores que, opa!, já estão lá muito bem definidos. O queijo mata acidez e picância.


As massas cumprem suas funções, sobretudo para quem não come porco ou vive na caverna do preconceito ao animalzinho mais suculento e gastronômico dos nossos menus. Tem até carbonara, que sei lá porque, virou tendência mundial. Dos molhos italianos, entendo ser o mais superestimado (adoro, mas só como em casa de quando em quando, naquela de abrir a geladeira e pensar: só tem isso, vai isso).


Grande trunfo do cardápio encerra com o arroz caldoso de bisque de camarões finalizado com umas fatias finíssimas de porchetta. Acompanhei o processo de desenvolvimento do prato. Na primeira prova não estava ajustado o suficiente, cozinha recém-inaugurada e ainda em testes.


Na segunda, aquele sabor entre o terroso e o marinho do caldo escuro de cascas de camarões e lagostins tomou o arroz com tanta potência, a denunciar toda essa cultura rocambolesca dos camarões internacionais, massacrada pela insipidez e falta de nuância dessa receita detestável que foi sendo reproduzida. Se é pra copiar, copiem a bisque do Trigo!


Embora não seja o motivo pelo qual você irá ao Le Birosque, popularmente chamado também de "A Porchetta", a carta de sobremesas entrega exatamente o que se pode esperar de um restaurante atento a uma comida de muita saciedade, imponência e espírito de botequim. Poucas opções perfeitamente executadas: pudim, musse de chocolate, torta de maçã e banoffee (a que eu chamo de novo petit-gâteau, porque chega!).


Le Birosque, assim, afunda a pretensão eurocentrada, mesmo recorrendo às mais clássicas técnicas e até modos inevitáveis das cozinhas francesas e italianas, com criatividade e toda a elegância da cultura caipira e da estética do boteco urbano: de estufa aparente, canela de pedreiro e sabores que grudam na memória, prontos para formarem uma nova geração boêmia que gosta de comer muito, muito bem.


Le Birosque

408 Sul, Brasília (DF)

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