Quando o restaurante Gero aportou em Brasília, no finalzinho de 2010*, causou um grande alvoroço na alta classe brasiliense. Enfim, uma chance de ter, na capital federal, a experiência de se comer no Fasano. Ok, num Fasano. Tá bom, num filhote de Fasano. Gero abriu em 1994 nos Jardins em São Paulo, como opção menos formal - e não tão mais acessível - do Fasano, esse ícone nacional da hotelaria e da gastronomia de luxo.
Com suas paredes de tijolos aparentes, salão amplo, lounge com sofás na antessala de espera, imenso balcão de bar à meia-luz e cadeiras confortáveis a ponto de afagar a digestão após um questionável espresso (a única memória desagradável que carrego da casa, tecnicamente falando), o Gero Brasília situava-se no Iguatemi Shopping. Ele personalizava a décor de SP para a experiência candanga apenas substituindo os quadros de retratos em preto-e-branco do cenário paulistano pelas canvas modernistas da nova capital, igualmente em P&B.
Impressionava a coreografia suave do atendimento, a precisão das entregas dos pratos, mesmo a coquetelaria e, obviamente, o serviço cuidadoso de vinho - somado a uma experiência até educativa de sommelierie. Fechou na pandemia. Soma, talvez, de motivos extra crise sanitária. Clientes costumeiros pareciam sedentos dessa gastronomia italiana à qual pouco estávamos habituados.
Eis que nasce um fenômeno para preencher o vácuo do Gero, ao qual chamo de os filhotes de Fasano.
Ora, as cantinas e restaurantes que ficaram, não ostentavam o mesmo glamour - talvez a Trattoria da Rosário ainda dividia a atenção deste público aguerrido por um italiano de "alta gastronomia". Os demais não chegavam nem perto. Villa Tevere (antigamente Trastevere) conheceu dias melhores, Ninny parece ter desistido de cozinhar legal há um tempo e da Cantina da Massa me sobra apenas a tal memória afetiva, porque o último tortelli de abóbora em molho tomatoso estava abaixo da média.
Há muitos outros restaurantes que trazem esse repertório de modo mais informal, como Italianíssimo, Nonna Augusta, Casa Baco, etc. Esta última com abordagem mais moderna, porém com dificuldades em emplacar esse cardápio tão melhor que a maioria de muitos italianos ditos "raiz", porque o povo injustamente só a conhece pela pizzaria napoletana. E, ainda assim, todas essas são casas mais joviais, longe do perfil das gravatas e louboutins que circulavam pelo Gero.
Conto de cabeça aqui uns dez restaurantes italianos que abriram recentemente na esteira da orfandade gerada pela saída do Grupo Fasano da capital federal - foi ali comprar cigarros e nunca mais voltou. No mesmíssimo posto de Gero entrou o Piselli, também vindo de São Paulo e com comida e serviço que não estão à altura do antecessor, embora o bata em preços.
Ex-chef do Gero, o meticuloso Ronny Petterson levou a experiência e alguns métodos e receitas consigo para o A'Mano (que já existia há um par de anos antes na Asa Sul), para onde foi também a talentosa sommelière Ana Clara Carvalho. Os novos sócios da operação inclusive contabilizavam passagens pelo Grupo Fasano. Tentaram, em vão, se distanciar à época da imagem de "outro Gero", como relatou um deles às Favas Contadas, de Liana Sabo.
E, então, começou mesmo o fenômeno dos filhotes de Fasano a dividir o espólio da clientela órfã de Gero: Ronny sai do A'Mano e abre o Aroma, também na Asa Sul. Ana Clara inaugura modestamente seu "fast-food gourmet" de massas frescas na praça de alimentação do Iguatemi, mas agora o torna num ristorante no Venâncio Shopping, o Que Pasta?! Cantina.
A coisa virou um fenômeno com a chegada de dois grandes nomes egressos do Fasano neste mercado brasiliense de pouco discernimento, largos bolsos e saudosos do imaginário consolidado da experiência gastronômica ítalo-paulistana. Carlão Rodrigues, ex-mâitre, e Salvatore Loi, que há dez anos encerrava sua impactante atuação como chef-executivo no grupo (pouco tempo após abrir o Gero, em Brasília).
Só Carlão abriu quatro restaurantes italianos - e vai para o quinto, isso em menos de três anos. Papà Cucina (Gilberto Salomão) e Babbo Osteria (Terraço Shopping) não são lá bem filhotes de Fasano. Já o novíssimo Cozze (Lago Sul) e o Marie Cuisine (francês no nome e italiano no menu e nas enormes réplicas de Arcimboldo nas paredes) os são. E, parece, que ele está com outro engatilhado para abrir no Brasília Shopping.
Salvatore Loi fincou os pés em Brasília com o Cappuccino, uma cafeteria-bistrô que preparou sua chegada com outro filhote de Fasano, o seu DOC Cucina, também na Asa Sul. Aliás, antes disso tudo, Loi estava envolvido, em algum momento, na formatação de ainda outro italiano com esse padrão de alta classe, o Solo, na Rua dos Restaurantes, quadra ao lado. Abriu sem ele, com o chef Leandro Garden à frente da cozinha. Mas Garden logo caiu fora de lá e foi assumir a cozinha e a operação do quê? De outro "fasaninho". Desta vez, no lugar do finado Mayer, num restaurante chamado Ciotto, também na Asa Sul.
FOTOS (divulgação): Salão interno do Marie Cuisine com as obras de Arcimboldo; trufas brancas no Ciotto; salão exclusivo do Piselli; cenário do Solo; massa recheada de abóbora do Que Pasta?! Cantina; a famosa lasanhetta, ou lasanha invertida, de Salvatore Loi; santimboca com taglionili do Aroma; lasanha vegetariana do novo Cozze
São restaurantes que se dividem conceitualmente, mas cujos cardápios demonstram, em diferentes medidas, um desejo de resgatar o repertório conceitual (muitas vezes literal) do Grupo Fasano, com a inexplicável obsessão por trufas, pelas burratas, pelo filé rossini e por demais variações sobre o tema. Não importa o quanto se tente diferenciar a receita de conceito com raspas de contemporaneidade. Essas casas continuam a aludir ao imaginário do Gero.
O Aroma propõe um approach com mais jovialidade gourmet (aderindo a tendências contemporâneas); o Marie tem esse sotaque francês meio arranhado (que aparece aqui e ali); o Solo, não sei bem como ficou após a saída do Garden, que levou seu repertório ao Ciotto, fazendo algo semelhante ao Ronny, no Aroma, no quesito de releituras, mas com clássicos históricos, com o blinis demidoff.
Loi inventou umas modas também. Ele sempre inventa, vide seu Modern Mamma Osteria em SP. Provavelmente hoje o italiano com a melhor combinação entre o clássico e o moderno que temos por aqui. Contudo, nem sempre com o resultado mais positivo. Um salmão enrolado em mussarela de búfala que remete ao asséptico sushi com cream cheese; raspas de chocolate branco numa salada que, na real, fica só no discurso, pois é sutil e coberto por outros sabores... Ficam, sim, a memóra da fregola sardenha, bem distinta e de uma burrata (recheada com burratinas) acima da média.
O Cozze, único desses que ainda não fui, sugere um tom mais mediterrâneo, com atenção maior a frutos-do-mar. A ver, pois parece o menos filhote de Fasano de todos esses. Que Pasta?!, como o nome diz, esmera-se no preparo de massas principalmente, mas diversifica, passando pelos clássicos habituais que forjaram o gosto brasiliense órfão de Gero. Em outra oportunidade falo especificamente sobre esta experiência (preciso voltar mais vezes para uma leitura mais adequada).
PS: todo mundo tem que fazer um tiramisú diferentão, não é mesmo? Na taça, no prato retangular, desconstruído, com frutas vermelhas.... Mas nenhum deles chega àquele exemplar indefectível do Fasanão, de fato.
Que neura essa nossa com a gastronomia italiana elevada a fine dinning, servindo lasanha individual a três dígitos! Para tentar fazer sentido sobre este momento, entendo que o primeiro ponto está justamente no legado do Gero, a marcar o imaginário da comida italiana de salão a um refinamento que não é sua principal característica.
Outra explicação, talvez, seja revelada pela própria história da formação do mercado gastronômico de Brasília.
A questão é que a gastronomia brasiliense foi constituída sob o signo do cosmopolitismo e não da falaciosa e romântica tese do caldeirão multicultural, a apregoar Brasília detentora de uma culinária típica constituída pela representação de todas as regiões do Brasil.
Pelo contrário! Brasília alijou de seu centro retirantes nordestinos (então de maioria piauiense) que foi encontrar guarida 23 quilômetros distantes na então cidade-satélite forjada em barro e sem saneamento básico pela Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), a Ceilândia.
E a comida nordestina seguiu o mesmo destino. Sobrava ao Plano Piloto representantes ilustres dos regionalismos na Feira da Torre (barracas de acarajé e tacacá) e alguma coisa na Vila Planalto ou nos restaurantes de carne de sol.
De resto, a gastronomia brasiliense era tipicamente sudestina: maciçamente representada por casas de perfil internacional, mas de grande acento italiano (Roma, Adele, Kazebre 13, tudo na W3 Sul, mais Tarantella tornado Piantella, Don Vincenzo, Villa Borghese etc.).
Gero e os demais filhotes de Fasano, que pipocam nesses últimos dois anos pelo Plano Piloto como espinhas na puberdade, devem seu sucesso simbólico (embora não necessariamente comercial) a uma cultura ocupada em colocar a comida (e a cultura) brasileira sempre na categoria doméstica, da regionalidade ou da memória afetiva, enquanto paga caro demais em filé com trufa e burrata com pesto, para matar uma fome de representatividade de uma elite que come com os bolsos.
MENÇÃO DO CRÍTICO
Como neste texto não tivemos a crítica específica aos restaurantes, não será atribuída menção.
*Correção à data original publicada como "nos idos de 2011". Agradeço ao amigo e leitor assíduo Eugênio Oliveira, do blog Decantando a Vida, pelo toque.
Excelente texto e excelente visão sobre o "modo de comer em Brasília".
Vc foi cirúrgico na sua análise!!! Parabéns mais uma vez