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Encontro Gastrô, prêmio repleto de equívocos

Galeteria Gaúcha como melhor restaurante de comida brasileira, Vasto sendo a melhor parrilla e Madero levando melhor hambúrguer demonstram a completa aleatoriedade (para não sugerir coisa pior) do pleito organizado pelo Correio Braziliense


Premiações gastronômicas são hoje o mais puro reflexo da decadência de uma possibilidade de discussão acerca do setor da restauração que se possa levar a sério. Primeiramente porque em quase 100% dos casos, a metodologia é frouxa, displicente ou até inexistente, como faz transparecer a mais recente delas, da Encontro Gastrô - O Melhor de Brasília 2023, iniciativa do Correio Braziliense, cuja 11ª edição ocorrida ontem, no Brasília Palace Hotel, realizou uma celebração de equívocos, ou como prefiro ver: de piadas.


Antes, um preâmbulo. O métier gastronômico opera como qualquer outra indústria, sobretudo ligada ao entretenimento. Prêmios celebram e coroam, sobretudo, o êxito da comunicação (das relações públicas e do marketing). É assim no Oscar, no Grammy e, trazendo para a gastronomia, no World's 50 Best Restaurants - das premiações do segmento, a mais incensada.


(em tempo: não trago o Michelin para esta discussão particularmente, pois sua estrutura e metodologia não correspondem à de premiação e mais de avaliação, fazendo dele mais rigoroso, porém, não menos problemático, o que podemos debater em algum outro momento)


No Brasil, quem se meteu a dar prêmios foi a Editora Abril pela Vejinha (apelido concedido às edições regionais de Veja, dentre as quais a famigerada Veja Comer & Beber). Nacionalmente, era ela e a Gula, talvez. Regionalmente, Prazeres da Mesa, Paladar, Folha Comida etc.


Falo de dentro do sistema. Já fui jurado convidado de Vejinha por vários anos, trabalhei como crítico em Veja Brasília e, portanto, fui avaliador e também responsável por escolher e convidar jurados para integrarem o corpo avaliador, além de meter meu bedelho na própria metodologia em si. Posso garantir: o sistema é falho, limitado e, portanto, "injusto", principal acusação relegada aos prêmios em modo geral.


Podemos dizer que Veja Comer & Beber é ainda a maior referência no imaginário de pessoas interessadas no circuito gastronômico (sobretudo com o fim do Guia 4 Rodas, que, como Michelin, apresentava metodologia mais sólida e, portanto, maior credibilidade).


Para a leitora e o leitor que não conhecem como funcionam as premiações, deixo aqui uma garantia para vocês: elas podem ir de pequenos esforços individuais de avaliação (por parte de alguns jurados) até à completa aleatoriedade ou, em casos extremos, à "venda" do prêmio, em troca de anúncio na publicação por trás da láurea.


Essa relação promíscua do comercial com o editorial é o que mais pega em qualquer espécie de disputa. Todo mundo se mobiliza, torce, vota, alimenta expectativas, enquanto os principais vencedores já estão escolhidos. Neste quesito posso garantir que em Veja Comer & Beber, ao menos em minhas gestões, isso nunca ocorreu.


No caso de Encontro Gastrô, não sei dizer. Mas os resultados mostram por si o desapego com qualquer metodologia provável de garantir um pleito com alguma credibilidade. Chega a ser risível.


Primeiramente, porque os jurados envolvidos (isso vale para Veja) precisam ter alguma notoriedade no tecido social da região. Assim, gente sem qualquer capacidade de diferenciar uma baguete de um pão de fôrma pode decidir o destino daquele prêmio. Segundo, porque envolve voto popular. Ou seja, comprova-se não a qualidade do restaruante, mas de sua capacidade de comunicar, engajar e persuadir a audiência. E o voto popular é afetivo, interesseiro, contaminado por sabores e dissabores que pouco importam à gastronomia.


Mas vamos dar umas boas risadas desta edição da Encontro Gastrô - coisa que me limitava a fazer nos bastidores com um seleto grupo de amigos apenas. Deixemos público mesmo. Discutam aí nos comentários.


O que aconteceu no Encontro Gastrô 2023 foi um festival, mais uma vez de previsibilidade (quem ganha sempre continua ganhando sempre) e de aberrações. Vamos a alguns comentários por categorias (não estão todas aqui, só as que valiam algum comentário).


Bar e botequim: Quem levou o melhor da cidade foi o Primeiro Cozinha de Bar, que não é um bar medíocre, mas que, certamente, com essa grande cena que se desenhou em Brasília nos últimos anos, não acho que figura nem entre os 10 ou os 20 melhores. Se é um voto 100% de público, faz genuíno sentido. É bem bombadinho o bar.


Gastrobar: Quem levou foi Fausto & Manoel. Que não é um gastrobar. Ponto.


Bufê de festa: O problema aqui não é se premiar (de novo e sempre) Renata La Porta. É a categoria em si. Como avaliar isso, gente? Faz nem sentido. Isso revela outro erro enorme das premiações: falta de parâmetros e de seleção prévia de concorrentes. Por que Renata La Porta ganha sempre? Porque é só quem o povo lembra/conhece.


Cafeteria: Belini levou. Talvez a maior cafeteria (literalmente em tamanho). Melhor cafeteria? Respeito demais a Belini e, sobretudo, seu pioneirismo em servir café especial com torra própria em Brasília. Louvável. Mas a Belini há muito já foi ultrapassada pela riquíssima e inovadora cena de cafeterias da cidade. Mais uma vez, pesa aqui a falta de parâmetros para o prêmio. O que é uma cafeteria? Centrada no café ou nos lanches? Belini é restaurante, pizzaria, empório, tudo isso também. Mas seu forte não está no café. Não há um serviço de barista de tão alto nível como encontramos em muitíssimas outras na cidade.


Chocolateria/Doceria: Foi para a Sweet Cake. Literalmente bolo doce. Doce demais. Dois equívocos aqui: chocolateria não é. Doceria de memória afetiva traiçoeira, onde tudo é demais, molhado demais, ou seco demais, ou doce demais, ou com creme demais.


Melhor confeitaria e salgados: Foi pra Casa de Biscoitos Mineiros, de novo. mas, outro porém dos parâmetros surtados da Encontro. Qual a diferença de uma confeitaria para uma doceria? Por que em categorias diferentes? E por que junto com salgados? Bizarro. A confeitaria da Biscoitos Mineiros é tradiça. Boa, sólida, mas longe de ser melhor do que quem, de fato, se dedica a essa vertente. O prêmio parece estar na década de 1990 ainda. O salgado é firmeza demais. Não é meu voto, mas é firmeza.


Melhor gelateria/sorveteria: Bacio di Latte. Crème de la crème da ignorância. Parece que fizeram uma enquete no shopping e chegaram a esse resultado. Um sorvete semi ultra processado recebendo a coroa de melhor é de atestar a total irrelevância da premiação.


Melhor hambúrguer: Madero. Hahahahahahaha! Minto. Este aqui é o atestado maior da irrelevância da premiação. A disputa era Madero contra Bob's, por acaso? Porque a carne é bem parecida. O horror!" O horror!


Melhor Bufê de Self-service: Deu Coco Bambu do Brasília Shopping. É nivelar a gastronomia de Brasília muito por baixo.


Melhor cozinha light/salada: Foi com o Green's. A categoria é péssima, diga-se antes de mais nada. E essa escolha é a típica por conveniência. Bem a cara de um corpo de jurados que desconhece em absoluto o circuito gastrô da cidade.


Melhor feijoada: A do Lake's. Pode até ser, mas vemos aqui mais uma vez o êxito da tradição fronte ao que a cidade já apresenta por muitos anos de novo. Encontro ainda parada no tempo.


Melhor pizza: Baco Pizzaria. Das obviedades que, para um júri atento, que circule e entenda de comida, poderia até não ser. Mas é, seguramente, uma das melhores pizzas da cidade.


Melhor restaurante de hotel: Deu o B Hotel. Talvez a única referência da premiação mais contextualizada.


Melhor cozinha brasileira: Galeteria Gaúcha. Precisa comentar alguma coisa? Talvez é perguntar: como que chegaram a essa conclusão? Em qual metodologia no mundo é possível que isso aconteça?


Melhor cozinha contemporânea: Lago Restaurante. É a coroação das técnicas mais elementares das cozinhas francesas e italianas, com muito queijo muito molho, muita massa e muito risoto, elevadas a apresentações repletas de penduricalhos sem função saporífera e muita presunção.


Melhor japonês: Noru Sushi. Anos-luz atrás do New Koto, mas um pouco acima da média horrenda da oferta deste segmento que temos por aqui.


Melhor bistrô: Marie Cuisine. Esta categoria, pra mim, é hilária. Basicamente ela agrega restaurantes que colocaram no nome a palavra bistrô. Neste caso ganhou uma que não tem isso no nome e que, certamente, não possui formato de bistrô.


Melhor carne/parrilla: Deu... vocês estão preparados? Vasto. Sim, um dos mais medíocres restaurantes de Brasília, que nunca me acertou um ponto de carne, ganhou como melhor parrilla. Vasto é o famoso, como digo, restaurante-pato. Voa, nada e anda, mas não faz nenhuma dessas coisas direito. É um trambolho o menu do restaurante. Diria que se teve uma coisa que estav até legal nas vezes que lá comi foi a espiga de milho. E ainda assim, a Tenda da Pamonha, na feira do lado de casa faz uma melhor.


Melhor carta de vinhos: Dom Francisco. Sempre ganha. É uma ótima carta. E é uma pena que ganhe novamente, por um simples motivo: mostra que Brasília estagnou e se acomodou com importadoras que fazem cartas para os restaurantes por comodidade.


Chef revelação e chef do ano: Respectivamente Raphael de Lucca (Cozze) e Ronny Peterson (Aroma). Não tenho ressalvas a eles. Mas é um resultado sintomático de como está o mercado de Brasília, que insiste em viver à sombra do Gero (leiam depois o que escrevi sobre Filhotes de Fasano, órfãos de Gero uns posts atrás).


Melhor restaurante de Brasília: Marie Cuisine. Quem votou neste prêmio realmente não conhece a gastronomia da cidade, não conhece de comida ou simplesmente deixou-se hipnotizar pela vibe kitsch-high-society do lugar. Um belo prêmio para coroar um festival de equívocos.


O setor está feliz da vida, obviamente, não vai reclamar, pois está ávido a ostentar a plaquinha no restaurante e capitalizar em cima disso, uma vez que Vejinha praticamente morreu e Brasília não está no radar dos prêmios internacionais (que padecem de semelhantes problemas).


O indicativo mais claro é de que a metodologia de avaliação não funciona, se é que existe, e sempre opta por um recorte classista eurocentrado, que considera "alta gastronomia" qualquer coisa, como a aberração do Vasto, que seja praticada no interior de alguma requintada estrutura arquitetônica, distinta o suficiente para permitir apenas a ostentação.


Às favas com a comida!




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